portal Correio Web 23/08/2010 - Naiobe Quelem
O fim da exclusividade entre as credenciadoras e cartões de crédito ou débito, em vigor desde 1º de julho, reacendeu o debate sobre a cobrança diferenciada para o pagamento em dinheiro e no cartão. Até então, a oferta de descontos para as compras à vista, em espécie, — defendida por comerciantes — era justificada pelos altos custos com aluguel do equipamento e pelas taxas administrativas cobradas por cada transação. Dessa forma, em vez de pagar à administradora até 4,5% do valor da compra realizada com cartão, essa porcentagem poderia ser repassada aos clientes que pagassem em dinheiro, na forma de abatimento no preço. “Agora, os lojistas não têm mais esse argumento para sustentar a cobrança diferenciada. Com a unificação das máquinas, a tendência é que a concorrência aumente e as taxas caiam. Além disso, não será necessário alugar vários equipamentos, mas apenas um”, avalia a coordenadora institucional da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Pro Teste), Maria Inês Dolci.
No início do próximo mês, a Pro Teste lançará uma campanha para conscientizar o consumidor sobre os riscos de tal diferenciação. “Isso contraria o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que considera abusivo elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços e ainda variar o preço de maneira uniltateral, de acordo com os artigos 39 e 51, inciso X, respectivamente”, explica Maria Inês. “O aluguel da máquina e as taxas administrativas são custos do lojista. Cabe a eles negociar com as administradoras e não repassar a conta ao cliente porque o consumidor já tem suas despesas com anuidade, com diferentes tarifas, além de juros quando entram no crédito rotativo. Além disso, é preciso lembrar que um comerciante que aceita cartão tem maior possibilidades de negociar”, defende.
Contexto polêmico
A campanha surge em um contexto polêmico, quando o Banco Central (BC) se prepara para apresentar ao Conselho Monetário Nacional (CMN) uma proposta para conter os abusos cometidos pelas administradoras de cartões, prevista também para o próximo mês. A regulamentação é assunto delicado e motivo de divergência entre os próprios órgãos que estão cuidando da questão. Entre as causas de discordância está a possibilidade de desconto para a compra à vista, em dinheiro. A sugestão teve parecer favorável na versão final do Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamentos no Brasil, divulgado em 7 de maio e elaborado pelas equipes técnicas do BC, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Fazenda. Além disso, há projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, visando facultar aos estabelecimentos comerciais a cobrança de preço diferenciado nas vendas com cartões.
A despeito das movimentações políticas, outro argumento forte reforça a campanha da Pro Teste: as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a questão vão contra a diferenciação de preços. A última delas é de março deste ano, quando a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça proibiu um posto de gasolina no Rio Grande do Sul de cobrar preços diferentes para pagamento em dinheiro daqueles em cartão não parcelado, sob pena de multa diária de R$ 500.
O Ministério Público gaúcho entrou com ação coletiva de abuso contra o consumidor. No STJ, o relator, ministro Massami Uyeda, afirmou que a empresa ao optar pelo uso do cartão de crédito paga um percentual da venda em troca da garantia do pagamento, a qual atrai mais clientes. Para o relator, trata-se de uma estratégia comercial que não pode onerar o consumidor, com gastos de responsabilidade do empresário. Por isso, Massami Uyeda considerou essa prática como abusiva, pois o consumidor já paga à administradora uma taxa pela utilização do cartão de crédito.
“Isso abre forte precedente para que as decisões em contrário possam ser revistas, inclusive quando já tiveram o mérito julgado pelo próprio STJ”, argumenta Maria Inês, citando como exemplo Brasília. No Distrito Federal, o Sindicato do Comércio Varejista (Sindivarejista) ganhou na Justiça o direito de cobrar preço diferenciado nas vendas a crédito. O Instituto de Defesa do Consumidor (Procon-DF) e o Ministério Público recorreram ao STJ, que, no final de 2008, confirmou a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em permitir tal diferenciação com o argumento de não favorecer aqueles que têm condição de ter um cartão de crédito em detrimento das pessoas de baixa renda, que não podem arcar com os custos do dinheiro de plástico.
Impedimento
“Por essa razão, o Procon-DF fica impedido de fiscalizar tal prática e autuar as empresas”, explica o diretor jurídico do órgão, Enoque Barros. Vale lembrar que tal prática só é permitida para o comércio varejista — cerca de 19 mil estabelecimentos de ruas e de shoppings no DF — e para as compras no cartão de crédito. Para o pagamento no débito, tal diferenciação não é permitida, embora seja utilizada por alguns lojistas.
Nas ruas, os consumidores não acreditam que tal diferenciação possa trazer benefícios. “Hoje em dia, é muito mais fácil utilizar o cartão, até mesmo por uma questão de segurança. Ninguém mais sai com muito dinheiro na carteira. Além disso, o cartão está sendo muito utilizado pelas pessoas de baixa renda que precisam fazer compras a prazo. Não entendo a lógica desse negócio, o cliente é penalizado por utilizar um produto aceito pelo próprio comerciante para elevar suas vendas”, analisa o mestrando em ciências florestais Júlio César Sobreira, 29 anos.
O corretor Sílvio Augusto de Melo, 40 anos, também não abre mão do desconto, mesmo pagando no cartão. “Hoje em dia, os lojistas sabem que o cliente pedirá desconto. O preço nunca é real. Então, se eu perco o desconto, imagino estar pagando bem mais que devo. Além disso, as taxas administrativas dos cartões caíram”, argumenta, ao lado da mulher Sandra Regina Eineck, 43 anos, com quem fazia compras na última quinta-feira em um shopping da cidade.
O presidente do Sindivarejista, Antônio Augusto de Moraes, diz que “a expectativa do comércio é que haja uma redução significativa nos custos para operação com cartão. No entanto, como o mercado ainda está em processo de adaptação, não é possível perceber essa mudança”, observa.
Compartilhamento
Desde 1º de julho, as credenciadoras de cartão de crédito, popularmente conhecidas como “maquininhas”, passaram a aceitar qualquer bandeira. Dessa forma, não é mais preciso que o comerciante tenha uma máquina para cada tipo de cartão. Com apenas uma é possível atender todos os clientes. A expectativa é que mais bandeiras entrem no mercado brasileiro e, com o aumento da concorrência entre as empresas, os custos das operações para os lojistas sejam reduzidos.
Questão de isonomia
O assunto não é consenso nem mesmo entre os defensores das causas dos consumidores. O promotor da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor (Prodecon) de Ministério Público do DF, Leonardo Bessa, defende que a questão seja resolvida sob o princípio da igualdade (isonomia), ou seja, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
“Os comerciantes sempre repassarão custos aos clientes. A questão é: posso transferir custos específicos a consumidores que não geraram esses gastos e não usufruem de determinado benefício? O comerciante que aceita cartão só recebe a quantia 30 dias a partir da data de compra, além disso tem de arcar com o aluguel do equipamento e com a taxa administrativa. Ao serem exigidos preços iguais, a redução dos lucros dos lojistas seria compensada por todos os consumidores, tanto os que compraram com cartão como não, já que as perdas nas transações com o dinheiro de plástico seriam distribuídas nos preços das mercadorias de uma forma geral. Portanto, sempre que houver uma justa razão para o tratamento diferenciado, não se deve falar em ofensa ao princípio da igualdade.”
Já para o consultor econômico Álvaro Musa, sócio-diretor da Partner Conhecimento, tal prática não faz sentido para o consumidor. “Antigamente, a classe privilegiada era quem tinha cartão. Hoje, ao contrário, boa parte dos 600 milhões de cartões em uso no mercado estão nas mãos de compradores de baixa renda, que não podem pagar à vista. Além disso, os defensores da diferenciação alegam os custos com aluguel do equipamento e com as taxas administrativas. No entanto, operar com cartão ainda é mais barato que com cheque e dinheiro, levando-se em consideração os riscos de inadimplência para o pagamento em cheque e os gastos operacionais com o trabalho de manusear o dinheiro, assegurá-lo e transportá-lo. Isso sem levar em conta que o cartão aumenta a possibilidade de negócios”, analisa.
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